02 novembro 2006

O microcrédito hoje

O microcrédito hoje, surge como um mecanismo de resposta, um recurso ao alcance de quem pretende desenvolver um projecto individual ou colectivo na senda da criação de uma actividade rentável; para quem enfrenta obstáculos, que em muitos casos acabam por ser dissuasores, oferece não só a esperança e independência económica, como também o poder sobre a sua vida e, em muitos dos casos, a participação activa em prol da sua comunidade.

“Simplificadamente o microcrédito consiste na realização de micro empréstimos financeiros feitos aos pobres com a finalidade de torná-los auto-empregados.”
[1] Tais empréstimos devem partir de uma base de confiança, não sendo necessário recorrer a qualquer tipo de contrato jurídico, “O significado da palavra «crédito» é «confiança». No entanto, a institucionalização do sistema bancário comercial, ao longo dos anos, fez sempre na base da desconfiança mútua.”[2]

Todas as instituições deverão partir do pressuposto que cada cliente é honesto, e devem estabelecer assim, com cada um deles, um relacionamento próximo baseado na colaboração, e acima de tudo, na confiança. As estatísticas comprovam que somente 1% dos empréstimos não foram reembolsados à instituição.

Desde o início que se pretende que este sistema seja o mais simples possível – facilitando não só a quem recebe os empréstimos, que possui, na maioria das vezes, um grau mínimo de escolaridade; mas também às instituições que concedem e gerem os empréstimos em causa. O Banco Grameen deixa algumas matrizes que visam este objectivo:
- Os empréstimos cedidos não devem superar o prazo de um ano;
- As prestações de reembolso deverão ser semanais e fixas;
- O pagamento deverá ter início uma semana após o empréstimo;
- A taxa de juro anual a praticar deverá rondar os 20%;
- A prestação de reembolso deverá sofrer uma elevação de 2% a cada semana, ao longo das cinquenta semanas seguintes.

As instituições gestoras devem seguir quatro princípios básicos:
- Profundidade e Abrangência: para que este sistema seja realmente eficaz na luta contra a pobreza é necessário que a instituição consiga apoiar efectivamente o maior número possível de pessoas desfavorecidas;
- Sustentabilidade: a instituição ao cobrar sempre os empréstimos concedidos, será auto sustentável economicamente, e assim poderá construir uma dinâmica de ampliação, que lhe permita auxiliar um número crescente de pessoas;
- Escala: quanto mais ampla a escala a que trabalha a instituição maior será o número de clientes, e melhor sucedida será a redução efectiva da pobreza;
- Permanência: para que a instituição alcance os objectivos a que se propõe – tornar possível uma melhoria acentuada na qualidade de vida dos clientes – é necessário que ela trabalhe contínua e prolongadamente, fornecendo os seus serviços a longo prazo.

Segundo Muhammad Yunus, o essencial para um projecto de microcrédito ser bem sucedido reside: na forma como enaltece as qualidades humanas dos clientes; na responsabilidade das instituições aquando criam novos projectos, pois estes devem ter sempre como prioridade as populações e as suas necessidades; numa actuação descentralizada, que busca estratégias que assegurem o apoio a indivíduos ou comunidades mais isoladas; na recuperação das despesas do projecto através das taxas de juro, bem como na exigência permanente do pagamento dos empréstimos, como garantias da já referida auto-sustentabilidade da instituição.

O microcrédito distingue-se de muitos projectos de luta contra a pobreza que se baseiam em ofertas e se norteiam por um certo “paternalismo”, e que ao fim ao cabo obstam as transformações a longo prazo. O microcrédito ao exigir o reembolso das parcelas, distancia-se da “caridade”, fomentando um senso de responsabilidade e disciplina, que permite ao pobre “quebrar as amarras” que o aprisionam à pobreza e a miséria. “O dinheiro que ganham torna-se, pois, um instrumento, uma chave que dá acesso a um domínio de outras competências, uma chave para explorar o próprio potencial de cada um.”
[3]

Nas primeiras experiências de microcrédito, tentou-se que fossem as mulheres as principais beneficiárias do programa, já que o Bangladesh é um país muçulmano que privilegia os homens em quase todos os aspectos da sociedade. Estas mulheres encontram-se duplamente fragilizadas, pela pobreza e pela fome, mas também pela forma como são tratadas e diminuídas na estrutura social. A grande maioria não tem oportunidade de se educar, aprender a ler e escrever, vivendo dependentes dos maridos, “As mulheres representavam apenas 1% de todas as pessoas que pediam empréstimos no Bangladesh. Parecia-me evidente que o próprio sistema bancário era sexista.”
[4] Para fazer face a esta discriminação, os membros do Grameen decidiram que pelo menos 50% dos empréstimos deveriam ser cedidos a mulheres, isoladas ou em grupo. No entanto com a experiência que foram adquirindo, outros aspectos se tornaram relevantes nestas questões de género, e foram-se descobrindo novas razões para favorecer as mulheres.

As mulheres revelaram-se agentes privilegiados de desenvolvimento, mostrando-se mais lutadoras e conscientes do presente. Em oposição aos homens, que tendiam a gastar os lucros em caprichos pessoais, estas procuravam assegurar um futuro melhor aos seus filhos, apoiando a construção de escolas na sua comunidade e melhorando o seu lar. Em geral, o dinheiro entregue a mulheres produzia mudanças mais rápidas. Estas demonstravam uma maior consistência no trabalho em prol da sua família e da sua comunidade.
[5]

Neste sentido, é de salientar a dimensão social do microcrédito. A independência económica que confere às mulheres, ao combater a sua exclusão social e a sua discriminação, permite-lhes desenvolver um empowerment – a voz e a força para denunciarem o universo nefasto em que estão submersas, libertando-as não apenas da fome, mas da escravatura político-social.
[6]

As mulheres inseridas em programas de microcrédito têm vindo a desbravar terreno, ao longo do tempo, no que se refere aos seus direitos, impondo-se face à discriminação, partilhando as suas experiências de vida entre si, criando laços de suporte social, e consequentemente protegendo-se mutuamente.
[7]

O Banco Grameen percorreu já um longo caminho – desde os 27 dólares emprestados em 1976, aos 2 300 milhões de dólares a 2,3 milhões de famílias em 1998 – rompeu fronteiras, e semeou esperança por todo o mundo, tornando possível vislumbrar um futuro sem fomes ou miséria.
[8]

[1] Marcelo Roque da Silva, 2002.
[2] YUNUS, Muhammad; O BANQUEIRO DOS POBRES; DIFEL; 2ª Edição, Tradução de Pedro Elói Duarte, Oeiras, Julho de 2002, 415 páginas, pp.156.
[3] YUNUS, Muhammad; O BANQUEIRO DOS POBRES; DIFEL; 2ª Edição, Tradução de Pedro Elói Duarte, Oeiras, Julho de 2002, 415 páginas; pp. 301.
[4] YUNUS, Muhammad; O BANQUEIRO DOS POBRES; DIFEL; 2ª Edição, Tradução de Pedro Elói Duarte, Oeiras, Julho de 2002, 415 páginas; pp. 125.
[5] É claro, que este processo nas sociedades machistas traz muitos problemas, o poder do homem aliado à insegurança de mulheres, que nunca controlaram as próprias vidas, e muito menos questões económicas, dificulta todo o processo, por isso, ainda que o empréstimo não lhes seja concedido directamente, os homens estão envolvidos no procedimento, figuram nas reuniões, e deles depende o consentimento para a participação da mulher num programa deste cariz, para que não sintam o seu poder colocado em causa.
[6] Estas premissas verificaram-se no crescimento da participação cívica, nas eleições de 1996, no Bangladesh, em que os fundamentalistas islâmicos (que possuíam dezassete lugares no parlamento anterior) perderam catorze lugares, e crê-se que este resultado seja consequência da grande afluência das mulheres às urnas.
[7] O BANQUEIRO DOS POBRES de Muhammad Yunus, 2002, pp.131, revela-nos um testemunho – “ (…) O longo silêncio foi quebrado quando Joynal [marido de Farida, mulher pertencente a um grupo de mulheres abrangido pelo Banco Grameen] falou num tom negativo: «- No entanto, há uma coisa. Eu costumava bater na minha mulher. Mas na última vez que lhe bati tive problemas. As mulheres do grupo de Farida vieram a minha casa e discutiram e gritaram comigo. Não gostei disso. Que direito têm elas de fazer isso? Eu posso fazer o que quiser com a minha mulher. Dantes, quando costumava bater-lhe, ninguém dizia nada, ninguém me chateava. Agora já não é assim. O grupo dela ameaçou-me que seria mau se eu voltasse a bater nela…»
[8] “Criámos um mundo sem escravatura, um mundo sem poliomielite, um mundo sem apartheid. A criação de um mundo sem pobreza seria um feito maior do que todos aqueles, e ao mesmo tempo reforçá-los-ia. Seria um mundo no qual todos teríamos orgulho em viver.” (Muhammad Yunus, BANQUEIRO DOS POBRES, 2002, pp.380).